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  • Foto do escritorIêda Lima

Um dia para não esquecer



Há 50 anos! Parece que foi ontem, o golpe militar no Chile que derrubou o Presidente Salvador Allende, que escolheu tirar a vida, para não se entregar aos golpistas liderados pelo General Augusto Pinochet. Eu estava lá, refugiada da Ditadura Militar que se instalara no Brasil e que se tornou mais dura após 1968, com o Ato Institucional nº 05. Havia sido presa aqui, quando estudante do curso noturno de História, na Universidade Católica de Pernambuco.


Trabalhava durante o dia, como secretária do SENAC/Recife, emprego que havia conquistado por meio de uma seleção que incluía, além de teste psicotécnicos, datilografar uma página sem erros. Assim, eu havia assegurado o financiamento dos meus estudos.


Num dia normal de trabalho, fui chamada pelo então Diretor do SENAC, que eu não conhecia e que ficava na sede regional. Não fazia a menor ideia do que ele queria. Até sonhei que seria para me dar aumento de salário, pelo meu desempenho. Ao chegar lá, ele me falou que policiais do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) teriam ido lá à minha procura, por “estar envolvida em movimento subversivo” e que se fosse verdade eu seria demitida. Atônita, agradeci pela informação, saí da sala, vi que o homem de bigodinho, que estava na sala de espera, já não estava lá. Peguei o elevador, desci, feito autômato.


Quando caminhava de volta para o trabalho, escutei uma voz masculina:


- Iêda!

Virei pra trás e vi o cara que estava na sala de espera, acompanhado de mais dois.

Respondi: - Sim?

Ele: - Você está presa!

Pegou no meu braço e falou baixinho. "Não reaja. Estamos armados."

Era o dia 14 de outubro de 1969. Levaram-me num jipe até a sede do DOPS de Recife. Durante o dia ficava sentada em uma cadeira, no escritório; à noite, cochilava numa cama de campanha.


Passei por interrogatórios por várias noites seguidas. Foi então que descobri que a reunião de lideranças estudantis, que aconteceria em um sítio que eu havia pedido emprestado a uma colega de turma, havia sido alvo da polícia política. Nos interrogatórios noturnos, apanhei muito de palmatória, por não saber dizer quem eram e onde estavam as pessoas, cujas fotos eles enfileiravam na mesa, e não falar meu endereço. Fiquei presa, incomunicável, até receber liberdade condicional, dia 22 de dezembro do mesmo ano.


Minha filha mais velha, Luisa, estava na minha barriga sem que eu soubesse. Ela nasceu nesse período sombrio, enquanto eu e o pai dela estávamos em autoexílio dentro do nosso próprio país. Fomos condenados, à revelia, sem advogado, a cinco anos de prisão. Crime? Ele, pertencer à Ação Popular, partido oriundo de jovens lideranças católicas. Eu, por via de consequência. Em 1971, buscamos asilo no Chile. Luisa tinha um ano e cinco meses.


Dia 11/09/1973 era um dia de fim de inverno, frio, porém claro. Saí de casa rumo à Universidad de Chile, em Santiago, onde conseguira matrícula para continuar o curso de História, iniciado em Recife, levando Luisa, de apenas três anos da idade, para deixá-la aos cuidados da creche localizada no Campus Universitário, e seguir para mais um dia de aula.


Ao me aproximar da Faculdade, deparei-me com um movimento anormal de colegas, concentrados no pátio. Foi então que fiquei sabendo que o Palácio de La Moneda, a sede da Presidência da República do Chile, estava sendo bombardeada e que estava em curso um golpe militar. Olhei para o céu, na direção ao centro da cidade, quando pude ver a triste fumaça negra. Sabendo o que estaria por vir, pois carregava a marca da perseguição no Brasil, de pronto pedi abrigo na casa de uma colega, que corajosamente aceitou. Passamos pela creche para resgatar Luisa, atravessamos o cordão militar de isolamento, que já se instalara em torno da Universidade, seguindo a pé por ruas não movimentadas até nosso destino.


O choque se encarregou de apagar da memória o nome e endereço daquela que se dispôs a nos abrigar, nas primeiras horas, até que eu pudesse avaliar a melhor hora de voltar para casa. Perdi a noção do tempo que fomos obrigadas a nos refugiar naquela casa; dois ou três dias, o tempo necessário para aguardar os desdobramentos. Nutria uma esperança ingênua de que houvesse uma reação das forças democráticas e legalistas.


No terceiro dia, ainda sem contato com o esposo, que era estudante de pós-graduação, desobedecendo ao chamado para que todos os estrangeiros se apresentassem na delegacia de polícia mais próxima, pelo risco que esse ato representava, decidi mais uma vez cruzar bloqueios militares, segurando minha filha pelas mãos, para voltar para a nossa casa alugada. Ficava no bairro da Providência, na Keller, 22. Aliviada e esperançosa, cuidei do banho e da comida de Luisa e a pus para dormir. Aproveitei para descansar; não tinha fome.


Desperto com o barulho de um carro estacionando em frente de casa. Vozes de homens. Levanto assustada, espio pela janela e vejo um jipe militar e três homens desembarcando e dirigindo-se ao portão de casa. Acontecera o que temia: algum vizinho atendeu ao chamado intermitente da Junta Militar, na televisão, para denunciar qualquer estrangeiro. Abri a porta antes que eles tocassem a campainha e despertassem Luisa. Ali mesmo recebi ordem para acompanhá-los. Sequer revistaram minha casa! Apenas estavam jogando a rede para pescar estrangeiros e fazer triagem nos interrogatórios.


Somente quem é mãe sabe avaliar o tamanho da dor de deixar Luisa com uma pessoa quase estranha, sem ter a menor ideia de se e quando poderia tê-la em meus braços de novo.


Por que fui presa em Santiago do Chile, mais uma vez? Porque militares brasileiros, que ajudaram os golpistas chilenos, procuravam por brasileiros que haviam fugido do Brasil.


Passei a noite em uma cela, com mais quatro mulheres vindas da Argentina e do Uruguai, que também estavam sob ditadura militar, com a ameaça de que iríamos ser transferidas para o Estádio Nacional do Chile, àquelas alturas lotado de presos políticos. Na manhã seguinte, meu marido convencera o chefe de plantão de que eu era apenas uma bolsista internacional, como ele.


Livre! Mas para onde ir?


No caminho da nossa casa, dirigindo um Citroen velho, José Serra, que usou sua cidadania italiana para salvar a vida de muitos conterrâneos, disse: cheguem em casa, preparem rapidamente uma sacola com coisas pessoais, que virei em meia hora pegar vocês três, para deixá-los na Embaixada do Panamá. Dito e feito. Anestesiada, preparei aquela segunda fuga como se fosse um domingo. Não havia celular nessa época. Era só esperar. Serra chegou.


Embarcamos no carro eu, Luisa e meu marido, que recém tinha chegado em casa. No caminho, fomos informados por Serra que a embaixada estava lotada de brasileiros, que ele e Betinho (o irmão do Henfil) haviam salvo.

Passamos uma vez na frente da embaixada, que era um apartamento pequeno. Havia um carro da polícia na esquina da rua. Não foi possível parar. Após rodar por 10 minutos, Serra fez nova tentativa. O carro tinha saído. Ele disse: desçam agora! Obedecemos.

O encarregado da embaixada não queria abrir a porta. Superlotação! Foi então que alguém abriu uma janela e disse: - Passe a menina! Eu, trêmula, perguntei: Que? A voz feminina lá de dentro respondeu: - Passe a menina! Não tivemos dúvidas. Passamos Luisa pela janela. Uma dor inigualável!


Expostos à prisão, a qualquer momento, aguardamos ansiosamente a abertura da porta. Finalmente, os olhinhos de jabuticaba de Luisa haviam amolecido o coração do panamenho.

Ao entrar, aquele burburinho de gente de mescladas nacionalidades, inclusive Betinho, e a falta de espaço para sentar e dormir não importavam. Estávamos salvos, junto com nossa filha, a minha companheira de ontem, hoje e sempre, com quem aprendo todo dia.


São momentos para não esquecer! A Democracia tem muitas falhas, não resolve todos os problemas da sociedade. Mas, uma Ditadura mata, tortura, interrompe a vida, torna adversários em inimigos e nos sufoca, forçando uma unanimidade em torno das suas crenças, como se fossem únicas.

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2 commenti


Wiviane Rizzi Wagner
Wiviane Rizzi Wagner
11 set 2023

Aguardando os próximos capítulos da história...

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Alvino Nóbrega
Alvino Nóbrega
11 set 2023

Não se pode esquecer a grande participação do Exército Brasileiro nos governos Médici, Geisel e Figueiredo, que deram total apoio ao Pinochet.

Naquela época, integrantes do Exército e polícia especializada, entre os quais Sérgio Fleury, foram ao Chile ensinar técnicas de tortura aprendidas com militares americanos.

Outro grande instrutor de métodos de tortura, foi o General francês Paul Aussaresses que criou fama ao implantar métodos nefastos de grande tortura na guerra da Argélia.

Esse sujeito veio a ser adido militar na embaixada da França aqui no Brasil.

Com ele por aqui, várias instalações do Exército Brasileiro como o Instituto Militar do Exército, a Escola Superior de Guerra e o Centro de Instruções de Guerra nas Selvas, foram utilizados para formação…


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